sábado, 21 de junho de 2008

Civilização e Progresso

A civilização ocidental moderna aparece na história como uma verdadeira anomalia: dentre todas aquelas que conhecemos mais ou menos completamente, esta civilização e a única que se desenvolveu num sentido puramente material, e este desenvolvimento monstruoso, cujo início coincide com o que se convencionou chamar Renascimento, foi acompanhado, como fatalmente o deveria ser, por uma correspondente regressão intelectual; não dizemos equivalente, pois se trata de duas ordens de coisas entre as quais não poderia haver qualquer medida em comum. Esta regressão chegou a tal ponto que os Ocidentais de hoje não sabem mais o que possa ser a intelectualidade pura, e nem mesmo suspeitam de que possa haver algo semelhante.
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É essencial notar que Pascal ainda considerava apenas um progresso intelectual, dentro dos limites em que ele próprio e sua época concebiam a intelectualidade. Foi no fim do século XVIII que apareceu, com Turgot e Condorcet, a idéia de progresso estendida a todas as ordens de atividade, E esta idéia estava ainda tão longe de uma aceitação geral que Voltaire apressou-se a ridicularizá-la. Não podemos pretender fazer aqui a história completa das diversas modificações por que passou esta idéia no decorrer do século XIX, e das complicações pseudocientíficas a ela acrescentadas quando, sob o nome de "evolução", desejou-se aplicá-la não apenas à humanidade, mas a todo o conjunto dos seres vivos. 0 evolucionismo, apesar de muitas divergências mais ou menos importantes, tornou-se um dogma oficial: ensina-se como uma lei, a qual é proibido discutir, algo que na realidade não passa da mais gratuita e mais mal fundamentada de todas as hipóteses. Por motivos ainda mais fortes o mesmo se passa com a concepção do progresso humano, que dentro dela aparece como sendo um simples caso particular. Antes de se chegar a este ponto, porém, houve muitas vicissitudes. Entre os próprios partidários do progresso alguns houve que não puderam se furtar a formular reservas bastante sérias: Auguste Comte, que começara sendo um discípulo de Saint-Simon, admitia um progresso indefinido quanto à duração, mas não quanto à extensão. Para ele, a marcha da humanidade poderia ser representada por uma curva com uma assíntota da qual se aproxima indefinidamente sem jamais atingi-la. De modo que a amplitude do progresso possível, isto é, a distância entre o estado atual e o estado ideal, representada pela distância entre a curva e a assíntota, decresce sempre. Nada mais fácil do que demonstrar as confusões sobre as quais repousa a teoria fantasista que recebeu de Comte o nome de "lei dos três estados". A principal destas consiste em supor que o único objeto de todo conhecimento possível é a explicação dos fenômenos naturais. Como Bacon e Pascal, ele comparava os antigos a crianças, enquanto que outros, em época mais recente, preferiram assimilá-los aos selvagens, por eles denominados "primitivos". De nossa parte, porém, pelo contrário, é a eles próprios que. vemos como degenerados (6) . Por outro lado, alguns, não conseguindo deixar de constatar a existência de altos e baixos naquilo que conhecem como sendo a história da humanidade, chegaram a falar em um "ritmo do progresso". Talvez fosse mais simples e mais lógico, nessas condições, não falarem mais em progresso de modo algum. Porém, como é preciso salvaguardar a qualquer preço o dogma moderno, supõe-se que "o progresso" exista até mesmo como resultante final de todos os progressos parciais e de todas as regressões. Estas restrições e discordâncias deveriam dar o que pensar. Muito poucos, todavia, parecem disto se aperceber. As diferentes escolas não conseguem chegar a um acordo, mas todas entendem que se deve admitir o progresso e a evolução, sem o que provavelmente não se poderia ter direito à qualidade de "civilizado".
(6) Apesar da influência da "escola sociológica", existem, até nos meios "oficiais", alguns sábios que pensam como nós a este respeito, notadamente o Sr. Georges Foucart que, na introdução de sua obra intitulada Histoire des religions et Méthode comparative (História das religiões e Método comparativo), defende a tese da “degenerescência” e menciona vários que dela compartilham. O Sr. Foucart faz a propósito uma excelente crítica da "escola sociológica" e de seus métodos. Declara, em seus próprios ternos, que "é preciso não confundir o totemismo ou a sociologia com a etnologia séria".
(René Guénon, Orient et Occident, Editions Véga, Paris, 2006)
Tradução: Maria Helena Lyra da Silva Rieper

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